Coração (Im)Perfeito

Será curioso perceber como podemos olhar para duas estruturas do nosso olho, o vítreo e a retina e encontrar nelas a mesma dinâmica dos laços amorosos que se criam numa relação, a dois, ao longo da vida. Dois apaixonados

Apresento-vos o vítreo, uma substância gelatinosa, que preenche a cavidade posterior do globo ocular. É-lhe atribuída uma função amortecedora, entre outras menos conhecidas, e, quando se desorganiza, origina as conhecidas “moscas volantes”. Ele está em contacto permanente com a sua amada, a retina.  A retina é o tecido nervoso que reveste a cavidade vítrea e que tem uma função fulcral na transformação de sinais luminosos em informação que seguem pelo nervo óptico até ao córtex occipital, onde é feita a interpretação da imagem.

Estes dois elementos vivem em aparente harmonia e equilíbrio na estrutura ocular, durante a maior parte da vida, mas, como qualquer casal, podem ter os seus momentos menos bons e desentenderem-se! As histórias dos desentendimentos entre este casal são numerosas, bem como as sessões de “terapia de casal” que registamos, uma vez que há várias doenças relacionadas com a interface/ tração vítreo-retiniana.

Mas, às vezes chega o momento do divórcio… apesar de esta relação íntima, entre vítreo e retina se manter ao longo do tempo, habitualmente na “meia-idade”, o vítreo “cansado” da sua companheira dá o primeiro passo e inicia a separação. Desencadeia este processo na área mais posterior do olho, a mácula. Esse fenómeno pode ser assintomático, se o divórcio for consensual… Mas se for abrupto, intempestivo, inesperado, surge um quadro de faíscas e um “vendaval” de teias/“moscas” (medicamente conhecidas como fotópsias e miodesópsias), tal como uma tempestade na mente de um amante abandonado.

Esta separação é conhecida como descolamento posterior do vítreo e pode ser documentada com a tomografia coerência óptica (OCT), que faz imagens em “corte” na espessura da retina. É nesses momentos que se captam estes fenómenos, dignos de registo, e que nos fazem regressar à imagem que despoletou este texto.

Ela surgiu, assintomatica, no gabinete de consulta na semana de São Valentim. Um coração perfeito na área macular, desenhado pela Natureza, ou melhor, pelo vítreo. Esta imagem, aparentemente perfeita e romântica (para quem ainda acredita no amor), esconde uma necessidade urgente de intervenção cirúrgica. O vítreo “amargurado”, numa tentativa de separação consensual, arrastou consigo as camadas mais internas da retina, a sua amada companheira, “ferindo-a” no seu íntimo. Ato esse, que deixa marcas, ao afetar a sua arquitetura, fazendo com que se rompa toda a sua espessura na área mais nobre da visão, a área foveolar, seguindo-se uma perda de visão central, remediável neste caso, pela cirurgia.

É através da documentação sistemática, mesmo em doentes assintomáticos, que passámos a poder antever desequilíbrios entre as estruturas, e sempre que possível, tentar restabelecê-los. Esta doente foi submetida a vitrectomia, onde houve libertação instrumental do vítreo e aderência vitreorretiniana, de modo a que as camadas da retina se pudessem voltar a unir, renovadas por uma nova relação, desta vez, com uma solução artificial aquosa. A aderência patológica entre o vítreo e a retina ficou resolvida, sem qualquer repercussão nociva na visão.

O coração foi desfeito, devido ao fim da relação amorosa, mas houve um novo recomeço…

 

Sofia Travassos

(médica oftalmologista)

 

 

Desengane-se quem vê nesta imagem uma história de amor romântico…

(Imagem de OCT)

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