Conflito entre paredes

O crânio do adulto não é mais do que uma caixa esférica, que guarda o órgão mais nobre do corpo humano, o cérebro. Hoje, este cofre é aberto com frequência para corrigir as mais diversas desordens que ocorrem nesse interior, os tumores intracranianos justificam essa intervenção. É disso que vamos falar, sem magia e sem medo. 

 

Abordar um tema tão vasto como o dos tumores intracranianos implica, por um lado, o respeito pela maioria que não tem conhecimento sobre matéria tão delicada e, por outro, a decência de não confundir doentes e familiares com nomes pomposos que deixam no ar uma aura de magia e medo.

Gostaria de tornar mais clara a ideia de que abrir o crânio e mexer no cérebro não é como meter a mão num cesto cheio de répteis. O crânio do adulto não é mais do que uma caixa esférica, com vários orifícios por onde passam os nervos cranianos, veias e tecido nervoso com continuidade com a medula. Encerra no seu interior o órgão mais nobre do corpo humano, o cérebro que, paradoxalmente, pode ser cortado sem causar dor. Completamente forrado interiormente por uma membrana “dura”, o osso não está em contacto direto com o cérebro, porque as três meninges, dura, aracnóideia e piamater, envolvem as estruturas nervosas em toda a extensão, além da atmosfera liquida, sob a aracnóide, que amortece o encéfalo dos movimentos bruscos ou pancadas no crânio.

Portanto, ao abrir uma janela na caixa esférica, o interior da casa só ficará totalmente exposto quando se abrir outra janela nas membranas envolventes da área a explorar. Muitos tumores intracranianos existem entre as chamadas tábuas externa e interna do crânio e do cérebro.

A primeira noção que deve ficar é que um tumor intracraniano não é necessariamente um tumor cerebral, já que nas células ósseas e nas meninges desenvolvem-se muitos tipos de tumores, a maior parte deles benignos.

Durante séculos existiu o medo de mexer no sagrado porque poderia alterar-se o curso do pensamento. O sagrado seria o cérebro, encerrado num cofre, que deveria ser aberto só em circunstâncias muito especiais. De salientar que a esperança média de vida antes da era dos antibióticos não ia muito além dos 40 anos de vida.

Hoje, o cofre tem de ser aberto com frequência para corrigir as mais diversas desordens ocorridas no seu interior. Contudo, manteve-se o medo, um pouco mais esbatido é certo, mas um medo de palavras, que assustam e que levam alguns doentes a dizer que têm a “doença da moda”.

Ora a doença da moda já foi a sífilis, a tuberculose e a lepra. Os tratamentos eficazes e o tempo quase apagaram aquelas palavras, de grande calamidade social, e foram substituídas por outras, mais modernas, como Alzheimer, Sida, tumor na cabeça e, mais recentemente, por outras como desemprego, desespero e fome. E a fome provoca muito mais dores que a grande maioria dos tumores intracranianos, quando descobertos precocemente no bem organizado Serviço Nacional de Saúde, ao contrário da fome, cujo diagnóstico se esconde, se ignora e se embrulha na estatística das décimas.

Numa visita a um museu de cogumelos, assisti a uma autêntica aula de nomes supostamente gregos, por indecifráveis para mim e fui confrontado com a beleza da maioria das espécies e a minha completa ignorância sobre a possibilidade de serem comestíveis ou evitáveis. Os nomes, tão parecidos quanto as espécies, assustaram- me, seguramente pelas consequências nefastas, mas sobretudo, pelo medo de estar perante uma espécie venenosa.

Dentro do crânio não existem cogumelos, mas podem existir outros nomes igualmente difíceis de articular: oligodendroglioma, ependimoma, astrocitoma, glioblastoma, angiopericitoma, hemanglioblastoma, teratoma, osteoma, osteossarcoma, meduloblastoma, meningioma, condroma, cordoma, schwannoma, neurionoma, glioma do nervo ótico, adenoma da hipófise, pinealoma, neurocitoma, etc…Pela terminação comum destas palavras podemos concluir que os “oma” são tumores e o que os distingue é o prefixo.

 

O quê, onde e de que tamanho

Na realidade, as células que se diferenciam por múltiplas razões e que dão origem a tumores, podem crescer rápida e desordenadamente, constituindo lesões malignas, ou podem crescer de forma lenta e não agressiva, constituindo estes a maior parte das lesões benignas. Devido à capacidade de se multiplicar rapidamente e de invadir estruturas vizinhas e ainda com a possibilidade de se disseminar à distância, por via sanguínea, o tumor maligno representa um risco acrescido em relação ao benigno.

Há ainda outros fatores a ter em conta nos tumores confinados ao crânio e que também podem influenciar de forma drástica o prognóstico. O primeiro fator é a localização onde o tumor se aloja e se desenvolve.

Numa loja de alta faiança, repleta de peças com valores de milhões ou de centenas de euros, não é indiferente limpar a mais barata localizada à entrada da loja, ou a mais valiosa, no meio de uma coleção, sendo preciso passar por uma pilha de objetos que se podem desmoronar. Também não é indiferente remover, sem partir, o prato no cimo de uma pilha deles, ou remover o que está por baixo, deixando os outros pratos empilhados e intactos.

Dentro do crânio também é muito diferente tratar lesões superficiais ou profundas.

Acresce ainda o facto de funções muito específicas estarem localizadas em áreas restritas, tanto em superfície como na profundidade do cérebro. Ao serem comprimidas ou invadidas por um tumor, por mais pequeno que seja, a função correspondente a essa área altera-se e pode perder-se, tanto por ação da lesão, como do tratamento. Por exemplo, o dano de uma pequena área do lobo occipital, superficial e facilmente acessível, pode dar uma lesão definitiva no campo visual e, a 2 cm de distância, essa mesma lesão, pode não provocar qualquer dano.

O segundo fator, além da histologia e da localização, é o volume que, dentro de uma estrutura fechada como o crânio, pode ter um grande impacto na sintomatologia, na orientação do tratamento e no prognóstico. Apesar de tudo, o volume não é tão importante como os outros dois fatores já que, por exemplo, uma lesão benigna de 10 ou mais centímetros numa área sem função específica, pode ser retirada sem grande risco e sem deixar sequelas. Há uma infinidade de situações diferentes dentro do crânio, articuladas com histologia, localização e volume e só com esta articulação é possível pensar em diagnósticos, tratamentos e evolução do quadro.

 

O medo da palavra e outras coisas mais

Não é suficiente dizer ao doente que tem um tumor intracraniano, sem o doente e a família pensarem que está em causa, sem mais explicações, um “oma”, com um prefixo mais ou menos longo. O palavrão assusta e o medo da palavra e da ideia do que pode acontecer não é muito diferente do medo dos cogumelos, apesar de eu só os comer se quiser. Contudo, se precisasse deles para sobreviver teria de arriscar, como aconteceu durante séculos, aos nossos antepassados que, na pesca, na caça ou nos frutos silvestres arriscavam diariamente. Ora o homem do século XX/XXI, mesmo sem necessidade de algo para sobreviver arrisca diariamente com drogas, tabaco, álcool, alimentação errada, stress nos limites, etc… está claramente demonstrado que estes abusos estão entre alguns dos fatores desencadeiam o aparecimento da doença da moda.

O medo das palavras, nomeadamente dos “omas” intracranianos deve atuar como incentivo ao tratamento, ao reforço psicológico do mau momento que persiste para além do diagnóstico, e ao interesse em ser esclarecido da natureza do “palavrão”, que irá decerto ser tratado com pinças. A luta não é uma guerra entre o doente e o médico, mas uma guerra entre os dois em conjunto e o tumor. Quanto mais esclarecidos estiverem os dois, mais armas podem juntar à luta. O doente não pode, nem deve, ser cego e surdo às explicações.

Para além do dever de ser informado, apenas ele, e à face da lei, tem competência no pleno uso das suas faculdades mentais, para autorizar o que quer que seja na orientação do diagnóstico e tratamento. Esta responsabilidade passa para os pais, no caso de menores e para o médico nos doentes comatosos, na urgência.

Ter medo de… não é suficiente para desfazer a dúvida e, depois do diagnóstico, ter medo de… não é bom conselheiro para iniciar o tratamento. Defendo intransigentemente que se conheça a verdade ou as verdades, para que possamos enfrentar os medos e combater as adversidades.

 

Sinais silenciosos ou não

Mais do que ter medo, é necessário reconhecer nos sintomas suspeitos, persistentes ou sugestivos de alteração neurológica brusca. Um ataque epilético tardio na idade adulta ou perda de sentidos sem causa aparente, devem ser investigados com urgência. Sintomas, diagnósticos e tratamentos não são sempre infalíveis, da mesma forma que os tumores intracranianos não são sempre tumores cerebrais.

Nem sempre as cefaleias são de natureza intracraniana, mas também não se pode dizer que nunca são de natureza intracraniana. Não se deve desvalorizar o que pode ter valor e, nesse contexto, as queixas persistentes devem ser sempre investigadas.

Não se deve ignorar que muitos tumores intracranianos crescem silenciosamente, sem dar sinal durante muito tempo, sendo descobertos por acaso, numa investigação de rotina. Por outro lado, há sinais que apontam a alteração da função neurológica e o estudo clínico e imagiológico podem confirmar a lesão, mesmo as de pequenas dimensões. Estão neste quadro, por exemplo, a surdez unilateral, a perda do cheiro, a diminuição ou perda de visão, a perturbação da linguagem, a instabilidade da marcha, a perda da atividade motora ou sensitiva nos membros, a visão dupla, a amenorreia precoce e galactorreia, a impotência sexual, o ataque epilético, etc…

Se houver conflito de espaço dentro do crânio, devido ao volume das lesões, edema local ou geral, obstrução à drenagem do liquor ou da circulação arterial ou venosa, as cefaleias persistentes, as perturbações do comportamento ou mesmo do estado de consciência, são sinais de alerta que impõem estudo urgente. E aqui começa o ciclo de informação ao doente, tão completo quanto possível e o consentimento deste, ou não, para o tratamento proposto. Os melhores resultados, em situações idênticas, acontecem com doentes mais informados e participantes. Enfrentar a adversidade é sempre penoso, mas esconder a realidade é negar a evidência e desistir de lutar.

 

Raimundo Fernandes

(médico neurocirurgião)

 

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